Sermão da planície, uma intertextualidade

Sermão da planície (para não ser escutado).

Bem-aventurados os que não entendem nem aspiram a entender de futebol, pois deles é o reino da tranquilidade. Bem-aventurados os que, por entenderem de futebol, não se expõem ao risco de assistir às partidas, pois não voltam com decepção ou enfarte. (...)
Bem-aventurados os que não são escalados, pois escapam de vaias, projéteis, contusões, fraturas, e mesmo da glória precária de um dia. Bem-aventurados os que não são cronistas esportivos, pois não carecem de explicar o inexplicável e racionalizar a loucura. (...)
Bem-aventurados os fabricantes de bolas e chuteiras, que não recebem as primeiras na cara e as segundas na virilha, como os atletas e assistentes ocasionais de peladas. Bem-aventurados os que não conseguiram comprar televisão a cores a tempo de acompanhar a Copa do Mundo, pois, assistindo pelo aparelho do vizinho, sofrem sem pagar 20 prestações pelo sofrimento. Bem-aventurados os surdos, pois não os atinge o estrondar das bombas da vitória, que fabricam outros surdos, nem o matraquear dos locutores, carentes de exorcismo. (...)
Bem-aventurados os cegos, pois lhes é poupado torturar-se com o espetáculo direto ou televisionado da marcação cerrada, que paralisa os campeões, ou do lance imprevisível, que lhes destrói a invencibilidade. Bem-aventurados os que nasceram, viveram e se foram antes de 1863 , quando se codificaram as leis do futebol, pois escaparam dos tormentos da torcida, inclusive dos ataques cardíacos infligidos tanto pela derrota como pela vitória do time bem-amado. (...)
Bem-aventurados os que, depois de escutar este sermão, aplicarem todo o ardor infantil no peito maduro para desejar a vitória do selecionado brasileiro nesta e em todas as futuras Copas do Mundo, como faz o velho sermoneiro desencantado, mas torcedor assim mesmo, pois para o diabo vá a razão quando o futebol invade o coração.

Sermão da planície (para não ser escutado). Crônica de Carlos Drummond de Andrade publicada no Jornal do Brasil, em 18/06/1974. Texto adaptado. Conteúdo licenciado pelo creative commons Disponível online: http://www.literal.com.br/acervodoportal/sermao-da-planicie-para-nao-ser-escutado-1199/. Acesso em:29/06/2014 às 15:11h {: cite=recuo.lpeu}

Compreendendo o texto:
A intertextualidade

O significado de um texto está na relação entre as palavras nele contidas. Porém, há textos que dialogam com outros, e nesse caso, para compreendê-los é preciso que identifiquemos com quem está dialogando e conhecer o texto que está sendo referenciado. O texto de Drummond Sermão da planície, dialoga com o texto bíblico Sermão da Montanha (do Monte). Chama-se intertextualidade essa arte de buscar em um texto fonte as palavras para produzir um segundo texto. Seguem abaixo, fragmentos do texto fonte:

O Sermão da Montanha

(...) Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados. Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão fartos. Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus. (...)

(A Bíblia Sagrada. Novo Testamento. Mateus, 5. Rio de Janeiro:Sociedade bíblica do Brasil.) {: cite=recuo.lpeu}

Ao analisar os dois textos, observamos a criatividade do autor ao construir o segundo texto. O texto bíblico traz frases assertivas afirmativas e a cada afirmação há uma recompensa: bem-aventurados os que choram, porque serão consolados; os que têm fome e sede, serão fartos. E, dessa forma, completa-se todo o sermão.
No texto de Drummond, as recompensas são aplicadas às ações negadas, ou seja, às frases assertivas negativas: Bem-aventurados os que não entendem nem aspiram a entender entender de futebol, pois deles é o reino da tranquilidade; Bem-aventurados os que não são escalados, pois escapam de vaias, projéteis, contusões etc. E assim o texto segue até o final. No final, o autor faz uma exortação ao leitor(s) à comparação do velho sermoneiro desencantado, alusão a ele próprio, nega tudo o que disse e afirma que ao torcedor é lhe dado o direito de rejeitar a razão. Portanto, textos que intertextualizam com outros são textos em que é preciso ter criatividade. Essa criatividade só é possível quando o autor tem um amplo conhecimento da língua e como pano de fundo o conhecimento pleno do texto fonte.

A figura de linguagem que predomina no texto de Drummond é a anáfora. Anáfora é uma figura de sintaxe ou de construção, que corresponde à repetição de vocábulos no início de cada verso ou de frase:

  • Bem-aventurados os que não entendem nem aspiram (...)
  • Bem-aventurados os que, por entenderem de futebol, não se expõem (...)
  • Bem-aventurados os que não são escalados, pois escapam de vaias, (...) etc.
Professora de Língua Portuguesa - Glória E. Galli - Formação - Letras na UNAERP e Mestrado em Linguística pela UFSCar
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