Era Medieval - Trovadorismo

Os períodos literários - mudanças históricas

As mudanças pelas quais as sociedades sofrem, de alguma forma, ficam registradas entre os povos: sejam por tradições orais, escritas, por desenhos, objetos, costumes e outras formas. Portanto, graças a esses registros conhece-se a trajetória dos homens no seu processo histórico. Influenciados pelo contexto histórico, pela mudança da própria sociedade, esses registros tomam, periodicamente, feições diferentes e recebem denominações específicas tais como estilos de época, movimentos literários ou estéticas literárias. Registramos, aqui, de forma sucinta, um pouco das raízes portuguesas na história brasileira.

As origens da literatura brasileira – era medieval em Portugal

Para conhecer o início da literatura brasileira é preciso conhecer, pelo menos de forma sucinta, as origens da literatura portuguesa, pois enquanto colônia portuguesa, a fonte de cultura brasileira era Portugal. A independência cultural foi sendo construída ao longo do tempo. Os primeiros registros pertencem à Era Medieval.

  • A ERA MEDIEVAL

As primeiras manifestações literárias datam do século XII. A linguagem desses textos era galego-português, pois na época havia uma integração linguística e cultural entre Portugal e Galícia (hoje, Espanha). Historicamente, essa época coincide com a expulsão dos árabes da Península Ibérica e com a formação do Estado português. Para melhor compreender a trajetória histórica, a Era Medieval está dividida em duas partes: o Trovadorismo e a Poesia palaciana.

  • Primeira época medieval: Trovadorismo

Contexto histórico:

  • expulsão dos árabes da Península Ibérica;
  • formação do Estado português.
  • Data dos primeiros registros: século XII
  • Linguagem: galego-português (na época -> integração linguística e cultural entre Portugal e Galícia, hoje, Espanha).

As produções que marcam esse período são predominantemente poesias, embora, o registro de manifestações literárias compreendidas entre 1189 a 1418, caracterizam-se por cantigas e novelas de cavalaria. Esse período corresponde à Idade Média. Essas poesias eram cantadas e acompanhadas de instrumento e danças para entretenimento popular e nas cortes, por isso denominadas cantigas. Os trovadores, pertencentes à nobreza, eram os profissionais que criavam a letra e a música desses poemas. As cantigas dividiam-se em líricas e satíricas.

As líricas, com raízes na Península Ibérica e com traços da cultura árabe, compunham-se em cantigas de amigo e cantigas de amor, representando, respectivamente o eu-lírico feminino e masculino. As cantigas satíricas dividiam-se em cantigas de escárnio e maldizer.

Essas produções foram coletadas e passaram a compor os cancioneiros. Os principais cancioneiros: Cancioneiro da Vaticana, Cancioneiro da Ajuda, Cancioneiro da Biblioteca Nacional.

Cantigas de Amigo - características

As cantigas de amigo representavam o eu-lírico feminino, com linguagem simples, ambiente rural, expressavam o lamento amoroso da moça cujo namorado partiu para a guerra contra os árabes.
É considerada a mais antiga cantiga Cantiga da Ribeirinha ou Cantiga da Guarvaia, de Pais Soares de Taveirós (1189-1198).

Pai Soares de Taveirós:
[...]
Ai flores, ai flores
De verde pino
Ai flores, ai flores
De verde ramo,
Ai, Deus, e u é?
Se soberdes nova de meu amado,
Ai, Deus, e u é?

Cantigas de Amor - características

Tiveram raízes na poesia provençal (Provença, sul da França) com uma linguagem própria dos ambientes das cortes francesas, onde eram cantadas. Menos musicalizadas, nessas cantigas o ‘eu-lírico’ é homem. Apresenta submissão à dama, vassalagem humilde e paciente; sempre a amada é a mais bela e há promessa de servir; elevação à mulher.

Um serão na corte, com execução de cantigas. ..
D.Dinis
..
Preguntar-vos quero, por Deus,
senhor fremosa, que vos fez
mesurada e de bom prez,
que pecados forom os meus
que nunca tevestes por bem
de nunca mi fazerdes bem
..
Pero sempre vos soub’amar
des aquel dia que vos vi,
mais que os meus olhos em mi;
e assi o quis Deus guisar
que nunca tevestes por bem
de nunca mi fazerdes bem.

Apoio para leitura do texto:
senhor: senhora
fremosa: formosa
bon prez: honrada
foron: foram
pero: porém
des: desde
mays: mas
mi: mim
assy: assim
guisar: decidir
quigi: dei
a todo meu poder: de todo meu coração

Cantiga de Pero Garcia Burgalês
..
Ai eu coitad! E por que vi
a dona que por meu mal vi!
Ca Deus lo sabe, poila vi,
nunca já mais prazer ar vi;
ca de quantas donas eu vi,
tam bõa dona nunca vi.
..
Tam comprida de todo bem,
per boa fé, esto sei bem,
se Nostro Senhor me dê bem
dela! Que eu quero gram bem,
per boa fé, nom por meu bem!
Ca pero que lh’eu quero bem,
non sabe ca lhe quero bem.

Cantigas de escárnio e maldizer

Compondo a literatura satírica, os poemas de escárnio e maldizer grande valor histórico por registrar valores culturais, históricos e linguísticos da sociedade medieval portuguesa.
Características
Essas produções expressavam um valor poético diferenciado: criticavam os costumes e tinham como alvo cavaleiros, clérigos devassos, nobres covardes na guerra, prostitutas, as soldadeiras e os próprios trovadores e jograis.

Cantiga de escárnio
... João Garcia de Guilhade
[..]
Um cavalo nom comeu
há seis meses, nem s’ergeu;
mais proug’a Deus que choveu,
creceu a erva,
e per cabo si paceu,
e já se leva!
..
Seu dono nom lhi buscou
cevada, nen’o ferrou;
mailo bom tempo tornou,
creceu a erva,
e paceu, e arriçou,
e já se leva!
..
Seu dono nom lhi quis dar
cevada, nen’o ferrar;
mais, cabo d’um lamaçal,
creceu a erva,
e paceu, arriçou [ar],
e já se leva!

Cantiga de Maldizer, do poeta Fernão Velho
..
Maria Peres se mãefestou (confessou)
noutro dia, ca por pecador (pois pecadora)
se sentiu, e log' a Nostro Senhor
pormeteu, pelo mal em que andou,
que tevess' um clérig' a seu poder, (um clérigo em seu poder)
polos pecados que lhi faz fazer
o demo, com que x'ela sempr'andou. (O demônio, com quem sempre andou)
..
Mãefestou-se, ca (porque) diz que s'achou
pecador mui't,(muito pecadora) porém, rogador
foi log' a Deus, ca teve por melhor
de guardar a El ca o que a guardou [.. ]
E mentre (enquanto) viva diz que quer teer
um clérigo, com que se defender
possa do demo, que sempre guardou
..
E pois (depois) que bem seus pecados catou
de sa mor' ouv (teve) ela gram pavor
e d'esmolnar ouv' ela gram sabor. (teve grande prazer em esmolar)
E logo entom um clérico filhou (agarrou )
e deu-lhe a cama em que sol jazer. (sozinha dormia)
E diz que o terrá mentre (terá enquanto) viver
e esta fará; todo por Deus filhou. (E isso fará, pois tudo aceitou por Deus).
..
E pois que s'este preito ( pacto) começou,
antr'eles ambos ouve grand'amor. / [...]

((Cantigas de escárnio e maldizer dos trovadores galego-português. Fernando V. P. da Fonseca. Liv. Clássica. Lisboa, 1961) {: class=recuo.lpeu}

Segunda época medieval

O período entre o século XV e início do século XVI é considerado a transição entre o mundo medieval para o moderno, pois em XVI inicia o Renascimento.
Houve produções em prosa e teatro. No gênero prosa registram-se: Novelas de cavalaria, hagiografias, cronicoes, nobiliários. No teatro, as peças exploravam temas em torno de mistérios, milagres, moralidades.

• A poesia palaciana: Características:
Cancioneiro Geral (Garcia de Rezende).
Afasta-se do acompanhamento musical e começa a se tornar formal.
Poesia palaciana: redondilhas: menor(5 sílabas)/ maior (7); uso de ambiguidades, aliterações e figuras de linguagem; plano amoroso (amor platônico ou visão idealizada). A poesia é mais elaborada do que as cantigas:

João Roiz de Castel-Branco (Séc. XV)
..
Senhora, partem tam tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.
..
Tam tristes, tam saudosos,
tam doentes da partida,
tam cansados, tam chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.[ ]

As produções da prosa historiográfica relatam os acontecimentos históricos de Portugal. O principal cronista dessa época foi Fernão Lopes, o qual inicia a prosa historiográfica. O autor não se limita a relatar a vida dos nobres mas inclui a sociedade como componente histórico.
..
No teatro, as produções passam dos temas da igreja ao teatro leigo, isto é, praticado fora da igreja (teatro de Gil Vicente). Nas primeiras décadas de XVI, o teatro tematiza os homens e as classes sociais. Ao delatar o fidalgo, o rei, o clérigo, o papa, o burguês comerciante, o médico incompetente, a mulher adúltera, a moça casamenteira, o nobre decadente, o velho devasso, o juiz desonesto entre outros, Gil Vicente demonstrar que o ser humano, diante dos apelos do dinheiro e da carne, é egoísta, falso, mentiroso, independentemente da classe social, raça, sexo ou religião.

Obras:
Auto das barcas ( Auto da barca do inferno, Auto do purgatório, Auto da barca da glória); O velho da horta, Auto da Índia, Farsa de Inês Pereira.

Auto da barca do inferno (Gil Vicente)

[...]
Vem um Frade com űa Moça pela mão, e um broquel e űa espada na outra, e um casco[1] debaixo do capelo[2]; e, ele mesmo fazendo a baixa[3], começou de dançar, dizendo:
Tai-rai-rai-ra-rã; ta-ri-ri-rã;
ta-rai-rai-rai-rã; tai-ri-ri-rã;
tã-tã; ta-ri-rim-rim-rã. Huhá!

Diabo
Que é isso, padre?! Que vai lá?

Frade
Deo gratias! Som cortesão.

Diabo
Sabês também o tordião[4]?

Frade
Porque não? Como ora sei!

Diabo
Pois entrai! Eu tangerei[5]
e faremos um serão[6]. Essa dama é ela vossa?

Frade
Por minha la tenho eu,
e sempre a tive de meu.

Diabo
Fezestes bem, que é fermosa!
E não vos punham lá grosa[7]
no vosso convento santo?

Frade
E eles fazem outro tanto!

Diabo
Que cousa tão preciosa...
Entrai, padre reverendo!

Frade
Pera onde levais gente?

Diabo
Pera aquele fogo ardente
que nom temestes vivendo.

Frade
Juro a Deus que nom t'entendo!
E este hábito no me val[8]?

Diabo
Gentil padre mundanal,
a Berzebu vos encomendo!

Frade
Corpo de Deos consagrado!
Pela fé de Jesu Cristo,
que eu nom posso entender isto!
Eu hei-de ser condenado?!...
Um padre tão namorado
e tanto dado à virtude?
Assi Deus me dê saúde,
que eu estou maravilhado!

Diabo
Não curês de mais detença[9].
Embarcai e partiremos:
tomareis um par de ramos.

Frade
Nom ficou isso n'avença[10].

Diabo
Pois dada está já a sentença!

Frade
Pardeus! Essa seria ela[11]!
Não vai em tal caravela
minha senhora Florença.
..
Como? Por ser namorado
e folgar com űa mulher
se há um frade de perder,
com tanto salmo rezado?!...

Diabo
Ora estás bem aviado[12]!

Frade
Mais estás bem corregido[13]!

Diabo
Dovoto padre marido,
haveis de ser cá pingado[14]...

Descobriu o Frade a cabeça, tirando o capelo; e apareceu o casco, e diz o Frade:
Mantenha Deus esta coroa[15]!

Diabo
Ó padre Frei Capacete!
Cuidei que tínheis barrete...

Frade
Sabê que fui da pessoa[16]!
Esta espada é roloa
e este broquel, rolão[17].

Diabo
Dê Vossa Reverença lição
d'esgrima, que é cousa boa!

Começou o frade a dar lição d'esgrima com a espada e broquel, que eram d'esgrimir, e diz desta maneira:

Deo gratias! Demos[18] caçada!
Pera sempre contra sus[19]!
Um fendente! Ora sus!
Esta é a primeira levada.
Alto! Levantai a espada!
Talho largo, e um revés!
E logo colher[20] os pés,
que todo o al[21] no é nada!

Quando o recolher se tarda
o ferir nom é prudente.
Ora, sus! Mui largamente,
cortai na segunda guarda!

  • Guarde-me Deus d'espingarda
    mais de homem denodado[22].
    Aqui estou tão bem guardado
    como a palhá n'albarda[23].

Saio com meia espada...
Hou lá! Guardai as queixadas[24]!

Diabo
Oh que valentes levadas!

Frade
Ainda isto nom é nada...
Demos outra vez caçada!
Contra sus e um fendente,
e, cortando largamente,
eis aqui sexta feitada[25].

Daqui saio com űa guia
esta é a quinta verdadeira,
e um revés da primeira:

  • Oh! quantos daqui feria!...
    Padre que tal aprendia no Inferno
    há-de haver pingos[26]?!...
    Ah! Nom praza a São Domingos
    com tanta descortesia!

Tornou a tomar a Moça pela mão, dizendo:
Vamos à barca da Glória!

Começou o Frade a fazer o tordião e foram dançando até o batel do Anjo desta maneira:
Ta-ra-ra-rai-rã; ta-ri-ri-ri-rã;
rai-rai-rã; ta-ri-ri-rã; ta-ri-ri-rã. Huhá!

Deo gratias! Há lugar cá
pera minha reverença?
E a senhora Florença
polo[27] meu entrará lá!

Diabo
Andar, muitieramá!
Furtaste esse trinchão[28], frade?

Frade
Senhora, dá-me à vontade[29]
que este feito mal está.

Vamos onde havemos d'ir!
Não praza a Deus coa a ribeira!
Eu não vejo aqui maneira
senão, enfim, concrudir[30].

Diabo
Haveis, padre, de vir.

Frade
Agasalhai-me lá Florença,
e compra-se[31] esta sentença:
ordenemos de partir.

Vocabulário_apoio:

  1. capacete, 2. capuz, 3. tipo de dança, 4. dança da corte, 5. tocarei, 6. sarau, 7. censura, 8. e essa batina não me vale nada?, 9. não me detenhas mais, 10. no acordo, 11. faltava essa, 12. bem arranjado, 13. você está mais arranjado, 14. Queimado com pingos de azeite, 15. referência à sua tonsura, 16. espeitado pela bravura, 17. adjetivo em referência a [[w:Rolando|]], heroí medieval cuja espada era inquebrável, 18. esgrimemeos, 19. para cima, 20. recolher, 21. resto, 22. valente, 23. sela de palha, 24. o queixo, 25. posição de ataque, 26. ser queimado, 27. ao, 28. espada, 29. parece-me, 30. concluir, 31. cumpra-se. {: class=recuo.lpeu}

Ver próximo período literário Classicismo/Quinhentismo

Professora de Língua Portuguesa - Glória E. Galli - Formação - Letras na UNAERP e Mestrado em Linguística pela UFSCar
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Feito ❤ por Glória & MePlex