Machado e a lanterna de Diógenes

Crônica

26 de julho de 1896

Apaguemos a lanterna de Diógenes; achei um homem. Não é príncipe, nem eclesiástico, nem filósofo, não pintou uma grande tela, não escreveu um belo livro, não descobriu nenhuma lei científica. Também não fundou a efêmera república do Loreto , conseguintemente não fugiu com a caixa, como disse o telégrafo acerca de um dos rebeldes, logo que a província se submeteu às autoridades legais do Peru. O ato de rebeldia não foi sequer heroico, e a levada da caixa não tem merecimento é a simples necessidade de um viático. O pão do exílio é amargo e duro; força é barrá-lo com manteiga. Não, o homem que achei, não é nada disso. É um barbeiro, mas tal barbeiro que, sendo barbeiro não é exatamente barbeiro. Perdoai esta logomaquia ; o estilo ressente-se da exaltação da minha alma. Achei um homem. E importa notar que não andei atrás dele. Estava em casa muito sossegado, com os olhos nos jornais e o pensamento nas estrelas quando um pequenino anúncio me deu rebate ao pensamento, e este desceu mais rápido que o raio até o papel. Então li isto: “Vende-se uma casa de barbeiro fora da cidade, o ponto é bom e o capital diminuto; o dono vende por não entender... do ofício. [...] Parecia-me fácil, a princípio: sabão, uma navalha, uma cara, cuidei que não era preciso mais escola que o uso, e foi a minha ilusão, a minha grande ilusão. Os homens vieram vindo, ajudando o meu erro; entravam mansos e saíam pacíficos. Agora, porém, reconheço que não sou absolutamente barbeiro, e a vista do sangue que derramei, faz-me enfim recuar. Basta, Carvalho! É tempo de abandonar o que não sabes. Que outros mais capazes tomem a tua freguesia ... A grandeza deste homem (escusado é dizê-lo) está em ser único. Se outros barbeiros vendessem as lojas por falta de vocação, o merecimento seria pouco ou nenhum. Assim os dentistas. Assim os farmacêuticos. Assim toda a casta de oficiais deste mundo, que preferem ir cavando as caras, as bocas e as covas, a vir dizer chãmente que não entendem do ofício. Esse ato seria a retificação da sociedade. [...] Cada homem assim devolvido ao lugar próprio e determinado. Nem por sombras ligo esta retificação dos empregos ao fato do envenenamento das duas crianças pelo remédio dado na Santa Casa de Misericórdia. Um engano não prova nada: e se alguns farmacêuticos autores de iguais trocas, têm continuando a lutuosa faina, não há razão para que a Santa Casa entregue a outras pessoas a distribuição dos seus medicamentos. [...] e, no caso ocorrente, o preparado estava certo: a culpa foi das duas mães. A queixa dada pela mãe da defunta terá o destino desta, menos as pobres flores que Olívia houver arranjado para a sepultura da vítima. Também há Céu para as queixas e para os inquéritos. O esquecimento público é o responso contínuo que pede o eterno descanso para todas as folhas de papel despendidas com tais atos.

(Machado de Assis, em A Semana. 26 de julho de 1896)

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, de 24/04/1892 a 11/11/1900. Obra de domínio público. Disponível em: http://machado.mec.gov.br/images/stories/html/cronica /macr12.htm#C1896. Acesso em: 18/08/2013. {: cite=recuo.lpeu}

Compreensão de termos:

Efêmera: de curta duração, passageira
República de Loreto: a república de Loreto refere-se a uma questões políticas que durante um certo tempo envolveram relações comerciais e tensões na fronteira brasileiro-peruana.
Viático: ajuda que se dava a enfermos ou viajantes.
Logomaquia: discussão sobre a origem da palavra.
Chãmente: dizer declaradamente

Ver artigo A lanterna de Diógenes

Professora de Língua Portuguesa - Glória E. Galli - Formação - Letras na UNAERP e Mestrado em Linguística pela UFSCar
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